segunda-feira, 10 de março de 2014

Fraude entra na mira da Receita

"Previsto pela Constituição desde 1946, o papel isento de impostos, conhecido como papel imune, cumpre a nobre função de incentivar a educação e a cultura no país. Nos últimos anos, porém, tornaram-se crescentes as fraudes com o produto, que é desviado dos fins previstos em lei – produção de livros, jornais e revistas – para outras aplicações, como catálogos comerciais, panfletos ou embalagens. Trata-se de um mercado irregular que pode superar R$ 1 bilhão por ano, com evasão de R$ 500 milhões em impostos estaduais e federais somente em 2012. E que causa prejuízo também à indústria, ao distorcer as condições de concorrência no mercado doméstico. De acordo com a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa), o consumo nacional de papel imune gira em torno de 500 mil toneladas por ano – em 2012, foram 503 mil toneladas, uma estimativa calculada a partir do volume impresso de livros, jornais e revistas e de registros concedidos pela Receita Federal. Contudo, ao contabilizar as vendas domésticas e as importações que ganharam esse registro especial de papel isento de impostos, o volume real negociado naquele ano, sob o benefício fiscal, sobe a 1,065 milhão de toneladas. A diferença, de 562 mil toneladas, corresponde justamente ao volume de papel que não recolheu impostos e deixou de ser usado na produção de livros, jornais e revistas, ferindo a Constituição. Do ponto de vista concorrencial, o papel imune que é transformado em comercial chega ao mercado com uma vantagem de preço de quase 40%, referente aos impostos que deixaram de ser recolhidos. Essa diferença nem sempre é integralmente praticada – há quem aproveite para levar uma parte desse percentual, embutindo-a no valor final. Ainda assim, provoca distorções nos preços domésticos. No país, Suzano Papel e Celulose, International Paper e Klabin são as principais produtoras ou de papel de imprimir e escrever ou de cartões, que podem receber o benefício fiscal conforme a aplicação. O combate ao desvio gerou uma série de iniciativas desde 2009: o recadastramento das empresas que efetuam transações com papel imune, a exigência de registro prévio e licença, a adoção do Sistema de Reconhecimento e Controle de Operações com Papel Imune (Recopi) em São Paulo – que já rendeu multas que, juntas, ultrapassam R$ 450 milhões -, o lançamento e a adoção gradual do Recopi Nacional e a exigência da rotulagem obrigatória para cargas de papel imune. Essa última medida, considerada cara, é apontada como extremamente eficaz no combate ao desvio, por literalmente “expor” o crime. Mais recentemente, entidades que representam todos os elos da cadeia lançaram o Termo Individual de Compromisso Voluntário de Transparência e Regularidade das Operações com Papel Imune. Em uma das forças-tarefa mais notórias nessa área, a Alfândega de Santos apreendeu, no ano passado, cerca de 250 contêineres de papéis que seriam desviados, ou o equivalente a 5 mil toneladas. Conforme a Receita Federal, o valor estimado chega a R$ 15 milhões só nesta carga. Outras três grandes apreensões em São Paulo envolveram outras 2,2 mil toneladas, ou R$ 7 milhões. Ainda assim, o fato de 21 novas licenças terem sido emitidas por mês, em média, no ano passado, indica que o apetite pela fraude seguia firme. O pano de fundo para o crescimento dos volumes desviados, segundo fontes ouvidas pelo Valor, é o declínio do consumo de determinados tipos de papel em mercados maduros, como Europa e Estados Unidos, o que gerou excedente de produção nessas regiões, combinado à instalação de novas máquinas na China. Diante do desequilíbrio entre oferta e demanda no exterior, esse papel passou a ser direcionado para os poucos mercados em que ainda há crescimento – caso do Brasil – e, mesmo que sem a intenção na origem, teria alimentado o crescente mercado irregular do produto imune no Brasil. “A indústria nacional consegue rastrear o seu produto, então é mais difícil que haja desvio. A importação não tem rastreabilidade, mas isso também não quer dizer que toda importação é fraudulenta”, pondera a presidente da Bracelpa, Elizabeth de Carvalhaes. Além disso, atribuir ao importador ou às papeleiras estrangeiras a culpa pela fraude, segue Elizabeth, é errado. “A cadeia papeleira é enorme e o desvio ocorre mesmo nas etapas de revenda.” A fraude com papel imune envolve a criação de empresas de fachada, tanto para obtenção da licença especial concedida pela Receita Federal quanto para emissão de nota fiscal de papel comercial (que, na verdade, corresponde ao mesmo produto que não recolheu impostos). Essa transformação da natureza fiscal ocorre na etapa de revenda, onde há a grande pulverização da cadeia, com pequenos distribuidores que abastecem milhares de pequenas gráficas. Em um ou dois desses casos, nomes vinculado à Associação Nacional dos Distribuidores de Papel (Andipa) aparecem como “inidôneos” em documento da Receita Federal obtido pelo Valor. Mas, em geral, é a base da pirâmide que comete a fraude, dizem fontes do setor. De acordo com o presidente da Andipa, Vitor Paulo de Andrade, a associação apoia todas as medidas de combate ao desvio de papel imune e adota uma postura clara diante de seus associados. “Todas as providências foram tomadas, mas a entidade não tem como ter o controle de tudo o que faz seu associado. Importante é combater o crime”, afirma. Além disso, explica Andrade, quando existe o flagrante de uma operação ilegal, toda a cadeia – quem vendeu e quem comprou o papel – é autuada se não houver quem responda pelo crime. “Por isso existe autuação para aquele que está acima de quem cometeu o crime”, afirma. Na Associação Brasileira da Indústria Gráfica (Abigraf), a posição é semelhante. ” Vemos com enorme preocupação esses números todos e apoiamos todas as medidas”, afirma o presidente da Abigraf Nacional, Fabio Arruda Mortara. “A Abigraf não tem poder de polícia e de fiscalização sobre os seus associados. Há muita controvérsia sobre onde ocorre o maior volume de desvio, mas é uma atividade criminosa em qualquer elo da cadeia.” Apesar de apoiadas por todos os elos da cadeia da indústria – papeleiras, importadores, distribuidores e gráficas -, as medidas ainda são consideradas insuficientes por alguns representantes do setor. “Qualquer medida que estimule a cultura tem apoio de nossa indústria”, afirma Elizabeth, da Bracelpa. “Mas o governo poderia, sim, avaliar com profunda seriedade a possibilidade de trazer os impostos de todo o papel usado para fins didáticos para um nível igual ou próximo ao do imune”, acrescenta."

Fonte: Valor Econômico

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